3/4/2015 12:59

O homem que estuda

Soará incompreensível aos palpiteiros do futuro a falta de Tite na seleção

O homem que estuda
O Corinthians de Tite pode levar a Libertadores, ou não. Abro à moda caetana para negar qualquer presunção de profecia. Fico com o fato: em menos de quatro meses, o treinador gaúcho transformou uma equipe travada, de passe e passo penosos, em um time de fluxo e toque fluidos. As peças são quase as mesmas de Mano Menezes, mas o resultado por assim dizer artístico difere do anterior como uma escultura de um peso de porta.

O Corinthians de Mano, de cinco meses atrás, tinha valor de uso – funcionava, e só. O Corinthians de Tite tem lampejos de time melhor do que o de 2012, ano da Libertadores e do Mundial. Vendo os quatro duelos alvinegros na Libertadores deste ano, não pude evitar a impressão de que talvez esse Corinthians aproveite a oportunidade desperdiçada por outros grandes esquadrões da América, como o Flamengo de 1981, e volte ao topo depois de um hiato, com elementos de uma mesma geração. Interessa-me à vera, entretanto, outra coisa: campeão ou não, sorte ou azar, o grupo na mão de Tite já joga um futebol em sintonia com o que se vê nas melhores ligas internacionais.

Testei essa ideia no Twitter um pouco depois da vitória corintiana sobre o Danubio, do Uruguai. Provoquei com a conjectura: este Corinthians brigaria por vaga na Champions League em qualquer liga do Big 5 na Europa (Inglaterra, Espanha, Alemanha, França e Itália). Ao lançar essa, pensava em Tottenham, Sevilla, Bayer Leverkusen, Saint-Étienne e Lazio. Quem quis leu "Corinthians = Bayern de Munique" ou "Corinthians = Campeão da Libertadores" – pura maldade, quem mandou cair na selva? Tite faz seu time jogar à altura do que exige o futebol global, e isso me basta para exaltar o trabalho dele.

Em entrevista recente ao Globoesporte, o treinador do Corinthians encerrou assim uma resposta sobre a possibilidade de dirigir a seleção brasileira:

Tomara que eu não ouça mais nenhuma vez das pessoas que o importante é vencer. Isso uma criança de três anos sabe. Que fiquem atentas ao processo, à construção, que elas fiquem atentas a tudo que se possa fazer para que possamos vencer.

Essa é a chave. Guardiola, Ancelotti, Mourinho, Klopp, Simeone, Pellegrini, Conte, Sabella e Bielsa são, mais do que vencedores, treinadores de construção. Cada um ergue à sua maneira uma pequena escola, olhando para o outro, investigando o que se passa "lá fora", seja lá qual for o "dentro" da equação. Vejo em Tite o potencial para participar desta troca.

Artigos recentes de Carlos Augusto Ferrari aqui no Globoesporte desvendam um pouco do Corinthians de Tite: “a compactação em relação à bola”, a presença em massa no campo adversário quando necessária, o avanço em pequenos grupos, a versatilidade do "nove", a blitz para forçar o erro do adversário, a capacidade de adaptação rápida aos dados do jogo, intensidade e intensidade, entrega e entrega. Tite é raro. Nem tanto pelos resultados, mas pela disposição de espírito mesmo.

Ainda assim, percebo uma má-vontade com Tite. A bem da verdade, não: por isso mesmo, percebo uma má-vontade com Tite. O treinador que estuda é um estranho no futebol brasileiro, visto com desconfiança. Um entre cinquenta treinadores estuda e se atualiza– e o que nós fazemos? Esperamos ele na curva, com vestes amarelas de sacerdote. No tropeço do homem que estuda, sacrificamos um bode para o Deus do Improviso. Nós, sacerdotes da bola-de-meia, guardiões do fogo sagrado, aguardamos Tite na curva.

Quanta pretensão. Quanta certeza de sermos ilha. Quem leu pelo menos cinco páginas sobre o tema sabe que nosso jeito de jogar, tão mistificado, só se efetivou sob o influxo de ideias de fora. A Escola do Danúbio moldou mais o futebol brasileiro do que a própria bola-de-meia, para ficar por aí. O que fazem Tite (o homem da vez), Marcelo Oliveira e uns gatos-pingados é apenas resguardar uma boa e negligenciada “tradição” do futebol brasileiro, a de conversar com o mundo.

(O culto ao Deus do Improviso pretende-se "contracorrente" no futebol brasileiro. Se já foi um dia, não é mais. É o mainstream, a meiúca e o centrão capazes de irmanar escritores e publicitários numa espécie de Teleton místico/romântico. O resto trabalha à margem.)


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