Campeão há cem anos, o Corinthians é muito mais Neco do que Elias, muito mais carroceiro do que área VIP
Ser corintiano já era ir além de ser ou não ser o primeiro em 1914. Ser o primeiro em 8 de novembro daquele ano foi ir além do próprio Corinthians, que comemorava o título inaugural de uma história cheia deles. Há um século, a vitória do time do povo foi uma vitória do próprio povo, que se enfiava em um esporte dominado pela elite.
Com uma goleada por 4 a 0 sobre o Campos Elyseos, no Parque Antarctica, a formação capitaneada por Casemiro González assegurou o troféu da Liga Paulista de Futebol (LPF). Foi uma campanha com 100% de aproveitamento, com dez triunfos em dez jogos, que mostrou: os “carroceiros” estavam chegando.
Em seus primeiros anos de vida, o Corinthians jogava na várzea e via o futebol crescer em popularidade, enquanto as elites do esporte estavam em guerra. Atritos constantes – por motivos como aluguel de campo, arbitragem e denúncias de pagamento aos atletas, então amadores – chegaram ao ponto máximo em 1913, com a cisão da liga que organizava o campeonato.
Na Apea (Associção Paulista de Esportes Atléticos), ficaram apenas Paulistano, Associação Atlética das Palmeiras e Mackenzie, um grupo claramente incomodado com a participação das camadas mais pobres no futebol. A LPF, por sua vez, deu alguma abertura para a nova realidade.
Já uma referência na várzea, o Corinthians aproveitou a brecha. Disputando um torneio classificatório, venceu suas duas partidas e conquistou uma vaga. O preconceito ainda estava longe de ser página virada, como ficou claro desde o primeiro jogo eliminatório, uma vitória por 1 a 0 sobre o Minas Gerais no campo do Velódromo.
Primeiro grande ídolo alvinegro, Neco ainda nem era um jogador do primeiro quadro, mas não suportou a ofensa do rico Manoel Domingos Corrêa – que viria a ser presidente do próprio Corinthians, entre 1941 e 1943. O jovem de 18 anos partiu para cima do comerciante, que chamou a equipe fundada por operários de “time de carroceiros.”
O problema dos grã-finos era que os carroceiros eram raçudos e talentosos. Após um ano de adaptação à qualidade dos adversários do futebol oficial, eles mostraram que seria necessário muito mais do que afrontas para freá-los. No campeonato de 1914, já com Neco como grande nome, o Corinthians conseguiu a campanha perfeita que iniciou sua trajetória de conquistas e ajudou a abrir o futebol para o povo.
Na noite do próximo domingo, antes do clássico contra o Santos, familiares dos campeões de cem anos atrás vão a Itaquera para uma homenagem e erguerão o velho troféu. Encontrarão um estádio moderno, com pisos de mármore, bem diferente do primeiro, na Ponte Grande, construído em mutirão pelos próprios jogadores.
Aplaudidos, os parentes de Aristides, Amílcar e Apparício terão pequeno reconhecimento de que o Corinthians só virou o que virou por causa dos que lutaram faz um século. A homenagem maior acontecerá quando os torcedores gritarem “corintiano, maloqueiro e sofredor, graças a Deus” e a gente como Neco.
Guardada no memorial alvinegro, a taça será exibida no estádio de Itaquera no domingo