Responsável pelas denúncias analisadas e julgadas pelas comissões do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), o procurador-geral Paulo Schmitt tem a missão de reunir provas que possibilitem a condenação de infratores.
Os temas que passam pela sua mesa vão de agressões ao preconceito. Em entrevista ao GloboEsporte.com na sede da Federação Paulista de Futebol (FPF), Schmitt afirma que um dos maiores problemas que o tribunal enfrenta é não ver a mesma rigidez em certos casos de outras autoridades.
Cita especificamente a falta de identificação da "ampla maioria" dos gremistas que gritaram palavras racistas contra o goleiro Aranha, do Santos, para embasar seu discurso.
- A Justiça Desportiva tem um alcance específico, dos seus jurisdicionados, mas aquele torcedor que pratica o crime fica impune, volta a se sentir na condição de frequentar estádios e praticar novos crimes - diz o procurador.
Pela análise de Schmitt, é assustador constatar que "se o goleiro não se insurgisse, não haveria nenhuma repercussão". Ao comentar se cantos de torcidas com dizeres homofóbicos, comuns em estádios de futebol, deveriam ser julgados no STJD, ele afirmou que há uma linha tênue entre provocação e preconceito. Ressalta, contudo, que aquilo que no passado era "mera provocação", hoje serve para detonar uma "explosão de violência".
O procurador-geral também avisa que estuda levar o caso Petros a instâncias internacionais. O jogador foi inicialmente condenado a 180 dias de suspensão e, em instância superior, a pena foi reduzida para três jogos. O procurador considera que essa decisão "prejudica diretamente o trabalho".
Ao comentar o caso que terminou com a permanência do Fluminense na Série A do Brasileiro e o rebaixamento da Portuguesa para a Série B, Schmitt afirmou:
- Para aqueles que torciam por um Fluminense na Série B, fica a ideia de que houve uma injustiça. Mas digo e repito sempre: se o beneficiado tivesse sido a Ponte Preta, a gente não tinha nenhum debate sobre o tema.
Confira os melhores trechos da entrevista com Paulo Schmitt:
GloboEsporte.com: A que pode se atribuir esse endurecimento de postura do STJD em relação ao racismo e como o senhor acredita que ficou a imagem do tribunal com essa decisão?
Paulo Schmitt: Não há uma decisão definitiva ainda nesse caso, está pendente de julgamento definitivo no STJD.
O que nós temos, que vale ressaltar, é que o tribunal já se posicionou sobre esse tema. Não é novidade punir o clube por esses atos.
O próprio Grêmio, recentemente, por decisão dada no STJD em um certame regional, foi punido com multa por ato específico de um torcedor com um atleta do Internacional e também, em outra disputa regional no Rio Grande do Sul, também houve pontos retirados, deduzidos em uma competição, porque ela permitia que assim fosse.
O artigo do CBJD que fala em preconceito tem a pena aplicável de perda de pontos, a não ser que a perda de pontos seja ineficaz diante da forma de disputa e da natureza da competição. Por isso houve a exclusão. Perder pontos, significaria a mesma coisa. Mas houve sim um precedente, já julgado pelo Pleno. Não é uma novidade para o tribunal.
No que a incorporação do Código da Fifa contribuiu para o combate ao racismo nos estádios?
O Código da Fifa foi uma das fontes de auxílio e inspiração na última mudança do CBJD em dezembro de 2009. Por força dessas modificações, houve um endurecimento com determinadas condutas, uma delas o preconceito.
A gente tem uma necessidade de contar com outras autoridades. A Justiça Desportiva não dá todas as respostas, nem tem como, que a sociedade precisa para fins evolutivos, até porque, quando se fala em racismo, estamos tratando de um atraso social histórico.
Quanto a outras modificações importantes incorporadas, até se utiliza o Código da Fifa em algumas hipóteses, é bastante salutar, nos coloca uma legislação bastante moderna de combate à violência e à indisciplina. O que falta mesmo no Brasil, em todas as áreas, é conseguir de uma certa forma cumprir a chamada tríade de controle, fiscalização e punição.
Sempre tem uma falha em uma dessas vertentes e nós não estamos tendo a mesma resposta de outros seguimentos, outras autoridades, para fazer com que todas as medidas, de forma conjunta, possam ajudar nesse combate à violência.
Tem um exemplo disso?
Veja só, os grandes distúrbios com torcidas organizadas. Terminamos 2013 com um episódio lamentável entre Atlético-PR e Vasco, iniciamos 2014 com toda sorte de problema em estádios, incluindo o arremesso de privada que acabou matando um torcedor, e assim por diante.
Então você vê muitas vezes uma resposta da Justiça Desportiva, punindo e responsabilizando clubes, mas de outro lado você não vê uma mesma mobilização das autoridades policiais, Ministério Público e autoridades judiciais para tentar, de uma certa forma, responsabilizar e aplicar efetivamente o Estatuto do Torcedor.
A Justiça Desportiva tem um alcance específico, dos seus jurisdicionados, mas aquele torcedor que pratica o crime fica impune, volta a se sentir na condição de frequentar estádios e praticar novos crimes.
A partir do momento que o STJD impõe uma pena tão dura quanto uma exclusão de competição e o torcedor não é punido, não fica uma sensação ruim para o torcedor que não participou da infração?
Temos falhas grandes na identificação dos criminosos. Nesse caso específico, pelo menos em primeira instância, não se conseguiu vislumbrar a identificação da maioria dos torcedores, quase a totalidade, à exceção da menina, que praticaram o ato criminoso.
Não só os xingamentos como os gestos. O que deixa o clube numa situação delicada, mesmo havendo circuito interno, imagens. É um espetáculo privado, um negócio, a gente está falando de um risco do negócio.
E o risco impõe aos organizadores essa identificação imediata, para dar mais conforto e para evidentemente combater de forma eficaz a violência, o que não vem acontecendo.
O senhor acompanhou o que aconteceu depois desse caso, a menina sofreu vários ataques, chegaram a tentar incendiar a casa dela, pediu desculpas mas o Aranha não aceitou... Gostaria que analisasse o desdobramento desse caso e a conduta do goleiro.
Em um fato dessa natureza, que traz esse tipo de comoção, o que nos assusta é que, se o goleiro não se insurgisse, não haveria nenhuma repercussão. Isso é assustador porque foi muito difícil captar essas imagens, levar o caso a julgamento.
Parece que há uma sensação generalizada de que algumas práticas dentro do futebol são comuns e portanto corretas, isso é assustador. A menina está sofrendo consequências porque o clube foi apenado em um primeiro momento, o clube foi chamado à responsabilidade.
Então há duas vertentes: ira do torcedor que viu o seu clube prejudicado em função do ato dela principalmente. Mas não pode esquecer que havia vários outros torcedores imitando gestos contra o goleiro, que não foram identificados, que parecem não ter tanta importância e têm talvez tanto quanto ou uma importância até maior quantos aos atos praticados.
E a outra vertente é uma sociedade já revoltada com esse tipo de prática.
A questão de cantos homofóbicos de torcidas é para tribunal ou tem de haver um jogo de cintura, porque fica entre o preconceito e simplesmente uma provocação?
Em 10 anos de tribunal, não temos uma atuação de deixar como se fosse algo comum e cultural. Não há uma tolerância. Para todos os atos que são identificados como infrações a postura tem sido oferecer as denúncias.
Então esse fenômeno, após a criação do Estatuto do Torcedor, após essa criação desse valor de conduta no código brasileiro, a gente tem tentado estar mais atento a esse tipo de manifestação.
Essas manifestações, se forem identificadas, sejam de cunho homofóbico, racial, o que for, e consideradas ofensivas ou xenófobas, podem ser objeto de uma denúncia por violação ao Estatuto do Torcedor e, se evidenciar o preconceito, além da multa, você tem também a perda de pontos, mando de campo.
Então esses casos todos de manifestações, se houver provas suficientes de que se enquadram nessa categoria, terão o mesmo destino que o caso do Grêmio do ponto de vista da Procuradoria de levar os casos a conhecimento do tribunal para responsabilização.
Citando um exemplo: há alguns anos, até em função da rivalidade e de o Renato Gaúcho ter sido ídolo no Flamengo também, toda vez que entrava em campo pelo Fluminense como jogador ou técnico ouvia um coro de "Renato viado".
Mas nunca foi dada essa conotação de preconceito, sempre ficou a imagem de algo muito mais para provocar do que manifestar um preconceito. Uma questão dessa, como fica?
Por isso que é difícil as pessoas darem opinião sobre isso. A pessoa que vai julgar, analisar, separar essa linha tênue que existe entre a manifestação, o xingamento e a manifestação preconceituosa.
Do ponto de vista da defesa, sempre vai ser provocação. Nunca vai se admitir em algum momento que ao tentar imputar a quem quer que seja palavras como "bicha", "viado", é para tentar diminuir a pessoa, ou dizer que o homossexualismo é algo que deva ser combatido na sociedade e que por isso se pode atribuir esse tipo de coisa a quem quer que seja.
Mas, lógico, você vai dizer, como ouço há anos, que o futebol está ficando chato. Não dá mais para xingar ninguém, não dá mais para determinadas condutas dentro dos estádios, fora dos estádios. Eu diria, realmente a sociedade está mais intolerante com certas condutas porque elas têm sido ingrediente de violência.
Aquilo que no passado era mera provocação, o famoso tirar um sarro, serve hoje sem dúvida alguma para uma explosão de violência a qualquer momento. Isso acaba fazendo com que quem tem autoridade tome algum tipo de medida.
Paulo Schmitt diz que orienta procuradores sobre conduta nas redes sociais
Diante dos recentes casos de problemas com postagens de auditores em redes sociais, como o senhor analisa essas questões e qual a postura que considera que deve ser adotada por um membro do tribunal?
Eu não vou emitir opinião nesse momento sobre auditores porque há um caso sendo avaliado, mas o que eu oriento a minha equipe de procuradores. Obviamente, qualquer pessoa que atue no futebol em qualquer nível, qualquer função, tem um time do coração.
A primeira coisa é se despir dessa condição, absolutamente. Parece quase uma suspensão provisória, no período em que você exerce certas funções você tem de procurar não misturar essas coisas.
Então, isso é mais do que uma orientação, é uma determinação. As manifestações em redes sociais e redes privadas, entre grupos de discussão, tem de ser com muito cuidado porque, ao mesmo tempo que você não pode se isolar da sociedade, você tem funções de interesse público que requerem que você fique acima de determinadas posturas. A cobrança social é muito grande.
O senhor considera os posts do Ricardo Graiche racistas?
Não vou me manifestar sobre o que está sendo investigado. Por enquanto, a Procuradoria só está acompanhando. É claro que o auditor tem sua linha de defesa, suas justificativas, inclusive na linha de que teria postado dezenas de outras mensagens contra o racismo e que isso obviamente não interessava ser explorado.
Então, como há uma série de provas a serem avaliadas, é melhor, por enquanto, seguir o procedimento antes da nossa manifestação.
No caso do Petros, uma agressão ao árbitro, houve uma pena pesada (180 dias). Mas depois aconteceu a redução para três jogos de suspensão. O senhor não acha que atenuar dessa forma uma punição por agressão ao árbitro, que não pode ser considerado lance de jogo, ataca a própria credibilidade do tribunal?
Não só acho que não foi adequada a diminuição, como nos insurgimos contra isso. A minha equipe está bastante decepcionada, desmotivada até um certo momento quando isso aconteceu. Essa diminuição, no entender da Procuradoria, e a gente respeita os auditores, a decisão é deles, compromete o trabalho todo.
Um auditor quando decide o caso, por mais que tenha autoridade, tem por trás dessa decisão uma engrenagem e uma sociedade na expectativa de coerência. No nosso caso, a expectativa do reconhecimento de um trabalho.
Não temos obviamente o interesse que todos sejam condenados, às vezes as denúncias têm como fim somente levar o caso a julgamento, sem nenhuma expectativa de resultado. Mas em um caso como esse especificamente, esse tipo de diminuição de pena, fora dos padrões, prejudica diretamente o nosso trabalho.
Mas há possibilidade de algum novo desdobramento nesse caso? Ainda há como rever essa redução?
A gente estuda a possibilidade de levar esse caso a instâncias internacionais, mas é um estudo ainda, temos de ver se temos a competência e a capacidade técnica para que isso aconteça. Esse tipo de derrota não é nossa, sentimos isso pelo futebol.
O jogador, quando faz besteira em campo, é julgado e a pena é divulgada. O árbitro decide uma partida com um erro grosseiro e vai ser julgado em um procedimento secreto, e fica muitas vezes a impressão até para os próprios jogadores que o árbitro pode errar o quanto quiser que não acontece nada. Embora o STJD não seja responsável por analisar erro técnico de arbitragem, como lidar com essa questão?
Pegando a sua última frase. O STJD não analisa conduta de arbitragem por erro técnico, assim como não analisa conduta de atleta por erro técnico. O atleta perde um gol embaixo da trave e vai para o Inacreditável Futebol Clube. Quem vai avaliar se jogará novamente é a comissão técnica do clube. O árbitro erra, nos impedimentos, pênaltis, por erros que acontecem, e outros por despreparo. Mas se for corrupção, má fé, intenção de não cumprir a regra, aí será analisado e julgado.
E as infrações em geral, se ele xingar, agredir, será julgado. É difícil para o torcedor porque ele enxerga no STJD a capacidade de resposta.
Outra alegação comum é de que os auditores, procuradores e membros do STJD em geral gostam de aparecer, que eles se comportam de forma diferente em casos de grande repercussão, com grande cobertura da mídia. Como o senhor analisa isso?
As denúncias que são elaboradas não levam em consideração a repercussão que o caso terá.
Algumas têm mais repercussão, então a matéria de prova que será levada ao julgamento é mais rica, pela fartura da cobertura, mas se você avaliar as nossas peças, os trabalhos são idênticos em qualquer situação.
Evidente que a mídia faz com o que o caso ganhe o que a gente chama de notoriedade. Essa notoriedade vai, sem dúvida alguma, atingir o ser humano. É inegável que fatos de maior repercussão social possam ter maior tensão por parte dos julgadores, mas essa sensação é apenas uma especulação.
Muitas vezes quem procura as autoridades são os próprios jornalistas e veículos que em alguns casos dizem que os auditores querem aparecer.
O Campeonato Brasileiro de 2013 teve o seu resultado final alterado pelo tribunal. O senhor acredita que este caso afetou positiva ou negativamente a imagem do STJD?
Acho que esses casos todos de participação irregular de atletas têm se mostrado de forma adequada nas decisões. Não teria como fugir de decisões já adotadas.
"Ah, mas veja só: naquele caso tem absolvição, no outro tem condenação". Cada caso tem sua peculiaridade. Agora, o que não tem de peculiaridade é um atleta punido, um atleta condenado em um dia, e dois dias depois participar como se nada tivesse acontecido. Isso não existe. Então foi o que aconteceu no caso do fim do ano.
Não tem muita justificativa plausível para absolvição. Para aqueles que torciam por um Fluminense na Série B, fica a ideia de que houve uma injustiça. Mas digo e repito sempre: se o beneficiado tivesse sido a Ponte Preta, a gente não tinha nenhum debate sobre o tema.
Essa é uma questão para refletir. Como o Fluminense não foi julgado, não era objeto do julgamento, houve um benefício por conta de pontuação, tabela, resultados, é uma situação que o tribunal não poderia pensar nesse contexto.
Deveria avaliar cada caso com as suas consequências, que se cumpra o que está no regulamento doa a quem doer. Mas a gente entende a dificuldade de compreensão de alguns.