"É um dia muito especial para mim e para a Zona Leste. A Copa vai deixar um legado social muito grande aqui", disse no dia 16 de setembro de 2011, em visita às obras do futuro estádio do Corinthians, em Itaquera, o craque Ronaldo, integrante do Comitê Organizador da Copa do Mundo de 2014, ao lado do governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, e do então prefeito, Gilberto Kassab.
Em 19 de agosto de 2013, Jerôme Valcke, secretário-geral da Fifa, reforçou: "Quando olho para esse estádio, há dois elementos para enfatizar: o legado para a Zona Leste e o fato de ser um local construído pelo futebol, por um clube."
Se do alto do terreno onde será jogada a primeira partida da Copa, dia 12 de junho, entre Brasil e Croácia, Ronaldo e Valcke firmassem o olhar mais a Leste, eles avistariam o Santa Marcelina, maior hospital da região mais populosa de São Paulo, respondendo por 4,2 milhões dos cerca de 11 milhões de moradores da cidade.
Avisos anunciam que não há atendimento
A reportagem do ESPN.com.br esteve na última terça-feira no Santa Marcelina e ali, a menos de 3 km do estádio, o legado ainda não chegou.
Já na fila do atendimento de emergência aos pacientes do SUS - Sistema Único de Saúde -, o serviço nacional de saúde pública, papéis colados na parede previnem: ‘Informamos que devido a SUPERLOTAÇÃO O PRONTO SOCORRO EMERGÊNCIA CIRÚRGICA encontra-se impossibilitado para novos atendimentos'. O aviso também valia para os pronto socorros de emergências clínica e ortopédica. Tampouco havia, segundo as notificações, psiquiatras no plantão.
"Falta médico, ninguém quer trabalhar na Zona Leste. Eles ganham pouco e ainda são agredidos pelas pessoas que se irritam com a demora para serem atendidas", testemunhou uma enfermeira de hospital do Itaim Paulista, bairro próximo a Itaquera. "Lá no Itaim é assim e aqui, também."
Pacientes esperam horas por atendimento
Horas na fila
No pronto socorro dos pacientes de convênios particulares, a espera na última terça-feira era longa: 3 horas para atendimento pediátrico e quatro horas para emergência clínica.
Havia quem estivesse lá por mais tempo. Rosa Maria de Oliveira, agente escolar, 53 anos, pegou sua senha às 9h e por volta das 12h45 ainda não tinha sido medicada. "Disseram que estou com a pressão alta, mas ainda não me deram remédio, não me disseram mais nada."
Do outro da sala seca - havia água no bebedouro, mas não copos -, quente e lotada, aguardavam pais e mães com suas crianças. Valdilene do Nascimento, 38 anos, auxiliar técnica, consolava desde as 8h seu filho Isaac, que sofria com febre e vômitos. Às 12h51, um Isaac foi chamado por uma das enfermeiras. Valdilene levantou em vão. O Isaac - de Souza Marques - não era o seu Isaac.
Protestos e lamentações se repetiam enquanto no alto da parede, em uma televisão, um programa esportivo exibia imagens dele, Ronaldo, o Fenômeno. Se lembrariam os doentes da frase do ex-atacante? "Não se faz Copa do Mundo com hospital."
Trabalho atrasado
Deveria ficar pronto em abril, mas pelo andar da obra, é difícil de acreditar. Assim como o estádio da primeira partida da Copa, a ampliação do pronto socorro do Hospital Santa Marcelina parece longe de terminar. Em meio a uma faixa que se desculpa pelo transtorno e uma estátua de Santa Marcelina, misturam-se as imagens de uma caçamba cheia de entulhos, um trator derrubando paredes e operários em serviços.
O Santa Marcelina é uma entidade filantrópica que atende clientes particulares e, especialmente, pacientes do SUS, que representam 87% dos atendidos. O hospital não é público, mas recebe investimentos estatais, como bem indica uma placa do governo de São Paulo em frente aos andaimes.
Em janeiro deste ano, por exemplo, Geraldo Alckmin anunciou um auxílio de R$ 25,6 milhões que ajudará a financiar o projeto de três pavimentos em aproximadamente 2,5 mil metros quadrados de área construída concentrando todas as portas de entradas de urgência e emergência do SUS. A expectativa é de que 12 a 15 mil pessoas por mês sejam atendidas.
Vista do hospital; ao fundo, à esquerda, o estádio da Copa
"O Santa Marcelina será referência para os jogos da Copa do Mundo, já que a abertura da Copa será aqui em Itaquera. Em abril, fica pronto o novo pronto-socorro, e nós teremos aqui um belíssimo pronto-socorro para atender quem precisa, atender a população e também como referência para a abertura da Copa", disse, na época, Alckmin.
Não é comigo
Em contato com a reportagem, a assessoria de imprensa da secretaria de saúde estadual fez questão de ressaltar que o governo simplesmente repassa as verbas e que não tem qualquer relação com a administração do hospital ou com a gerência das obras.
Ainda assim, a gestão Alckmin se envolveu com a Copa do Mundo e seu entorno ao atrair parceiros para a instalação das arquibancadas provisórias do estádio do Corinthians e ao participar da construção do Complexo Viário Polo de Itaquera, conjunto de obras que visam melhorar o trânsito local e custarão R$ 548,5 milhões, sendo R$ 397,9 milhões bancados pelo estado e R$ 150,6 milhões pela prefeitura.
Prefeitura que concedeu R$ 420 milhões de isenção fiscal ao estádio em forma de Cids - Certificados de Incentivo ao Desenvolvimento -, o equivalente a mais da metade do custo inicialmente previsto para a casa corintiana, de R$ 820 milhões.
As assessorias das secretárias estadual e municipal não responderam até o momento da publicação desta matéria se houve algum esforço adicional para que hospitais públicos atendam eventuais pacientes vítimas das obras do estádio, onde três pessoas já morreram e do entorno, se aumentou o investimento nos hospitais públicos da Zona Leste ou se a capacidade dos leitos consegue atender à demanda de pacientes da região.