Além da justa vitória do Corinthians e da pálida apresentação do Flamengo, há um debate que não pode ser perdido após o clássico do último domingo. Normalizar algumas cenas que marcaram um encontro tão nobre do futebol brasileiro é ignorar o compromisso com a construção de um ambiente melhor em torno do jogo.
Um Corinthians x Flamengo, de acordo com números de uma pesquisa de torcida publicada aqui no GE há pouco mais de 10 dias, é um jogo que interessa a 35% dos brasileiros. Ainda que se admita que nem todo este contingente siga todas as partidas dos dois clubes ou tenha tamanho interesse por futebol, é possível ter uma dimensão do alcance de um jogo assim. O clássico deveria ser tratado como uma ocasião especial, uma espécie de propaganda institucional do futebol brasileiro. Mas após um jogo que durou 115 minutos e 10 segundos, qualquer pessoa com interesse mediano pelo tema, mas que tenha decidido acompanhar o clássico mais popular do país, provavelmente desligou a televisão com a sensação de que viu mais demonstrações de brutalidade, hostilidade, falsa macheza, tentativas de burlar as regras do jogo ou tirar vantagem a qualquer custo.
Em resumo, muito pouco de futebol se extrai daquelas quase duas horas de partida. De acordo com um levantamento feito pelo Seleção Sportv, após o Corinthians fazer 2 a 1, aos 14 minutos do segundo tempo, houve mais de 20 minutos de bola parada no jogo. Ou seja, dos 31 minutos restantes de tempo regulamentar, mais os 15 de acréscimos, a bola não rolou por quase metade deste tempo. Aqui é preciso fazer uma ponderação. Há uma gravidade maior quando cenas como as de Itaquera acontecem num jogo deste tamanho. Justamente pelo alcance das camisas em questão. Mas, a rigor, o clássico é um retrato de tudo o que normalizamos no país.
E o Corinthians, que praticou boas doses de antijogo para não fazer a bola rolar naquele período em que tinha a vantagem, certamente já foi vítima do mesmo expediente em partidas nas quais estava perdendo. A questão é que todos, inclusive jornalistas, precisamos assumir um compromisso com a defesa do jogo. Tratar como estratégia episódios assim é renunciar a este papel. O fundamental é assumirmos que o futebol brasileiro não pode se contentar com quase metade do tempo de um jogo ser gasto com cera, quedas desproporcionais, demora para reposição de bola. Muito menos com o sumiço de gandulas ou com a súbita proliferação de bolas murchas ao redor do campo. Tampouco com bancos de reservas histéricos e com um auxiliar técnico flagrado, repentinamente, peitando um assistente de arbitragem na linha lateral.
Aliás, quanto às comissões técnicas, é brutal como um indesejável número de treinadores, auxiliares e preparadores abandonaram qualquer senso de responsabilidade na tarefa de dar exemplo aos grupos de jovens que comandam. O ganhar a qualquer custo está enraizado na conduta de gente demais no futebol brasileiro. Outra vez, o clássico em especial, e o Corinthians em particular, são apenas os exemplos da rodada. Porque a questão é cultural, é de falta de compromisso com a esportividade.
E uma vez mais, para que não pareça algo direcionado a dois times, vale lembrar que o Brasil já encontrou uma forma peculiar de lidar com a nova regra, testada com êxito na Eurocopa, que limita as rodas de jogadores em torno do árbitro: no jogo contra o Cruzeiro, o Internacional apresentou ao mundo o revezamento de capitães. Como cabe a eles a tarefa de representar o time junto à arbitragem, embora não estejam isentos de cartão amarelo quando extrapolam limites ou não contêm companheiros que partem para uma reclamação, a solução encontrada foi trocar duas vezes a braçadeira de dono. A cada vez, que o capitão da vez recebia cartão, um substituto era nomeado. A arbitragem brasileira tem mil problemas, todos eles abordados com frequência. Mas há momentos em que os profissionais do jogo fazem de uma partida de futebol no Brasil um ambiente indomável.