Num espaço de aproximadamente 24 horas, Sylvinho foi demitido em Itaquera, Abel foi ofendido na Ilha do Governador e Rogério Ceni ouviu impropérios em Bragança Paulista. O agora ex-técnico do Corinthians tinha oito meses de trabalho, Ceni ainda não completou quatro, enquanto Abel chegou apenas à terceira partida à frente do Fluminense. O que o futebol brasileiro vive é algo mais grave do que imediatismo, do que cobrança por resultados. É uma cultura enraizada. Mergulhamos fundo num sistema todo ele moldado para ir além da banalização da demissão: vivemos a descrença absoluta em processos, vulnerabilizamos treinadores, desqualificamos pessoas. Tudo mundo aceitou jogar o mesmo jogo, até os técnicos, que ajudaram a sabotar uma norma feita, em tese, para protege-los.
Ainda que a regra só se aplicasse ao Campeonato Brasileiro, é simbólico que todos estes eventos registrados na terceira data dos Estaduais tenham coincidido com a rejeição, por parte dos clubes, do regulamento que tentava limitar as trocas de treinadores. A redução de 26% nas trocas de comando em 2021 soa como um número solto quando se conclui que o futebol brasileiro não se permitiu uma experiência mais longa. Porque, no fim, o sistema entendia a regulação mais como estorvo do que como um caminho. A preferência é pela lei da instabilidade a que todos se adaptaram. A regulação não era um um fim em si mesma, mas um passo para uma tentativa de modificar uma cultura. E isto leva tempo. E ao tempo nós temos aversão.
Talvez seja difícil encontrar no mundo um ambiente em que se incorporou de forma tão clara a noção de que o treinador é o elo mais descartável da cadeia. É um círculo vicioso difícil de quebrar. O torcedor crê piamente no poder da troca e pressiona cartolas vulneráveis em clubes sob profundas influências políticas e em permanente busca por conciliação com a arquibancada. O atleta, educado a entender a mudança de seu comandante como inevitável, tornou-se condicionado a esperar pela próxima vítima. Há momentos em que sequer há razão para trabalhar pela salvação de um trabalho em crise, o clube se acomoda à espera do sucessor. E a crônica esportiva, numa realidade agravada em tempos de influenciadores digitais, reforça a narrativa do cargo ameaçado, do ganhar para garantir emprego, da especulação que vende, da indignação que dialoga com a arquibancada raivosa. E realimenta o processo. Tudo isso num tom desrespeitoso, que no lugar de julgar trabalhos, até porque trabalho é o que não há em processos tão rapidamente interrompidos, o que se faz é desqualificar gente, desrespeitar.
Cada parte tem um papel, inclusive os próprios técnicos. O primeiro e único ano sob a regra que tentava protege-los foi marcado por uma sucessão de farsas realizadas com coautoria de muitos deles. A farra do comum acordo servia para acomodar interesses, manter portas abertas num mercado fechado em que se pratica, a rigor, uma dança das cadeiras. Os técnicos ajudaram a desmoralizar a lei. A rigor, o difícil é achar quem trabalhe pela racionalidade.
O futebol de hoje cultua a raiva diante da derrota. Mas é brutal como o treinador é a face mais exposta. Há registros de celebrações de corintianos após a queda de Sylvinho. No Rio, um homem decente, do alto de seus 69 anos, era xingado aos palavrões após 270 minutos de trabalho. Para completar, Abel ainda tem história, títulos e serviços prestados ao Fluminense, mas isso deveria ser o menos importante. Ele não deveria depender deles para ser respeitado. Perdemos qualquer senso de razoabilidade.
Ao rejeitarem a regulação, os dirigentes não falaram somente por eles, mas refletiram o modus operandi do futebol no Brasil. O argumento de que a regra seria uma interferência na gestão de suas associações é, no fundo, uma falácia. Os clubes não brigam pela liberdade de se gerirem. Eles querem é a manutenção do direito a não se planejarem, a satisfazerem livremente a pressão de torcida e opinião pública ansiosas por uma cabeça servida numa bandeja, por um vilão. No fundo, acreditamos que esta é a forma pela qual as coisas funcionam. Achamos a conversa de processos e projetos uma grande perda de tempo. O mesmo Corinthians que terminou 2021 com um discurso de respaldo ao criticado Sylvinho, jogou fora pré-temporada e um mês de 2022 ao dispensar um técnico após três partidas no ano. Ninguém quis pagar para ver diante do coro de que “o pau iria quebrar” caso o treinador não fosse demitido.
Um dia após o outro, o futebol brasileiro escolhe o seu caminho: continuar refém de uma cultura que o cerca por todos os lados, seguir refém de seus vícios. Pessoas são descartáveis, ofensas são parte da rotina, demissões são uma banalidade. Cartolas, público, jornalistas e treinadores, todos têm uma parcela. Mudar cultura leva tempo. Mas sequer começamos a tentar escapar desse buraco.
#corinthians #timao #alvinegro #opiniao #sylvinho #treinadores