João Saldanha foi retirado do comando da Seleção pelos militares (Foto: Ag. Estado)
“Democracia para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reivindicações.”
Tal trecho faz parte do famoso Comício da Central, realizado no dia 13 de março de 1964 pelo então presidente do Brasil, João Goulart, no Rio de Janeiro. Na ocasião, diante de cerca de 200 mil pessoas, Jango assinou dois decretos que iniciavam as reformas de base que defendia (agrária, bancária, administrativa, universitária e eleitoral). Foi o estopim para a ala conservadora da sociedade brasileira agir. Com o pretexto de que João Goulart pretendia instalar um regime comunista totalitário no país (veja no vídeo como os militares usaram o Comício da Central), os “democratas” citados pelo então presidente organizaram o golpe.
Em 1º de abril de 1964, Jango era deposto, e os militares assumiam o poder. Foi instalado um regime que mudou o rumo da sociedade e de muitas instituições brasileiras, e o futebol, como uma das principais manifestações de identificação cultural do país, não foi poupado. No dia em que o golpe militar de 1964 no Brasil completa 50 anos, o GloboEsporte.com relembra alguns personagens, histórias e momentos em que ditadura e futebol se misturaram. E não foram poucos.
“90 milhões em ação, pra frente, Brasil, do meu coração”. Qualquer amante do futebol, de qualquer idade, reconhece os versos que embalaram o tricampeonato mundial do Brasil, em 1970. A canção de Miguel Gustavo foi o símbolo do uso da seleção brasileira para promover o discurso ufanista do governo de Médici. A publicidade do governo militar, que tinha como principal mentor o coronel Otávio Costa, chegou em seu auge. Mas a intervenção naquele time foi mais explícita.
João Saldanha, técnico que assumira a Seleção em fevereiro de 1969, era comunista. A escolha do treinador se deu pela popularidade de Saldanha, que participava de programas de rádios do Rio de Janeiro. Mas a postura do comandante incomodava, e em março de 1970, a poucos meses do Mundial do México, a comissão técnica do time brasileiro foi toda alterada.
Ainda no início de carreira, Zagallo assumiu o comando. A chefia da delegação para a Copa ficou com o major-brigadeiro Jerônimo Bastos, cujo braço direito foi o major Roberto Câmara Lima Ypiranga de Guaranys, que ficou responsável pelo esquema de segurança durante o torneio. O nome de Guaranys pode ser encontrado na lista dos torturadores do regime militar.
Nome do major Guaranys, chefe da segurança do Brasil em 1970, entre os torturadores da ditadura (Foto: Reprodução/Documentos Revelados)
Em campo, o Brasil formou um de seus maiores times da história, e o grandioso triunfo diante da Itália foi perfeito para o governo, como relata o historiador Carlos Eduardo Sarmento no livro “A Regra do Jogo: uma história institucional da CBF”:
“A catarse coletiva, contudo, foi largamente manipulada para que se transformasse em um patriotismo servil, com a vitória em campo associada a uma conquista do regime militar.”
AFONSINHO E SEU JEITO SUBVERSIVO
Afonsinho, ex-jogador de Botafogo e Santos (Foto: Reprodução/TV Globo)
Filho de ferroviários de Marília, no interior de São Paulo, Afonso Celso Garcia Reis conviveu desde criança com causas sociais. E carregou consigo os ideais formados na infância para o resto da vida. Revelado pelo XV de Jaú em 1962, Afonsinho se destacou dentro e fora de campo pelas posições firmes e pela conquista do passe livre dos jogadores que inspiraram até música – “Meio de Campo”, de Gilberto Gil – e filme - “Passe Livre”, de Oswaldo Caldeira. Em 1965, o ex-meia foi para o Botafogo, onde ganhou os principais títulos e chamou a atenção dos militares.
Estudante de medicina na UERJ, o jogador participava de grupos de discussão e seguia sua luta para se tornar dono do próprio passe. A barba e cabelos compridos ajudavam a criar a imagem “subversiva” do meia, socialista declarado. Tudo que fazia e dizia era observado.
- A questão do passe na qual me envolvi gerou repercussões muito grandes de natureza política. Aquilo acabou tomando vultos que não interessavam ao regime militar. O rumo que aquilo acabou tomando foi enorme. Minhas posições tinham relação política grande – avaliou Afonsinho.
Os problemas começaram no clube. O estilo de vida do jogador não agradava o conservador técnico Zagallo. Afonsinho treinava separado do restante do elenco. E não jogava. A saída foi ir embora. Passou por Olaria e Vasco até chegar no Santos, em 1972, onde sentiu mais próxima a vigia dos militares.
- Em uma excursão internacional do Santos, o jornalista da delegação teve uma posição muito digna. Na volta, ele me procurou e disse que havia sido abordado por órgãos de segurança para saber se na viagem eu fazia alguma coisa, procurava uma embaixada, algo assim – confidenciou.
NANDO: O ÚNICO JOGADOR ANISTIADO
No dia 9 de dezembro de 1971, o Brasil venceu a Argentina por 1 a 0 e garantiu sua vaga nos Jogos Olímpicos de Munique, realizados no ano seguinte. O gol da vitória brasileira foi marcado por uma jovem promessa: Zico. Nas Olimpíadas de 1972, a surpresa: o técnico Antoninho não levou o garoto Arthur. Na época, o ídolo do Flamengo não fazia ideia das razões para o corte da Seleção. Mas seu irmão, o também jogador Nando, tinha certeza de quais motivos levaram à saída do caçula da família Antunes da equipe olímpica brasileira.
Incentivado pela prima Cecília Coimbra – fundadora e presidente do grupo Tortura Nunca Mais –, em 1963, Nando, que cursava a Faculdade Nacional de Filosofia, e a irmã Zezé passaram no concurso do Plano Nacional de Alfabetização (PNA), programa criado por Paulo Freire. Após o golpe militar, o PNA foi extinto e seus membros considerados subversivos. Já atuante no futebol, Nando decidiu se dedicar exclusivamente ao esporte. Passou pelo futebol capixaba e pelo America-RJ, e nos dois clubes foi mandado embora sem maiores explicações. Em 1968, rumou para o Ceará, onde a situação melhorou. Até receber uma proposta do Belenenses, de Portugal.
Meteram o capuz na gente, ficamos quatro dias em um corredor, em uma cela. Passamos dois dias inteiros em pé. O braço descia e eles metiam o mosquetão nas costas
Nando, irmão de Zico, preso e torturado pela ditadura em 1970
Aos 22 anos de idade, Nando não teve as garantias prometidas pelo clube português e foi perseguido pela polícia da ditadura de Salazar. Com a ajuda de amigos, conseguiu voltar ao Brasil, mas teve dificuldades em seguir a carreira. Em agosto de 1970, no auge da repressão do governo Médici, a prima Cecília e o marido foram presos. Enquanto consolava a tia, Nando e os primos foram surpreendidos com o toque da campainha.
- Um dos meus primos foi atender, e aí entraram aqueles f... da p... com metralhadora. Levaram a gente, eu mostrei a carteira, me conheceram na hora, e pedi para o Custódio (Coimbra) ficar. Ele ficou com a mãe, o resto foi todo mundo em cana. Três irmãos, só liberaram o médico. Meteram o capuz na gente, ficamos quatro dias em um corredor, em uma cela. Passamos dois dias inteiros em pé. O braço descia e eles metiam o mosquetão nas costas – relembra.
Nando e os primos foram levados para a rua Barão de Mesquita, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Os irmãos Edu e Antunes fizeram plantão na porta do local para que fossem liberados, e o fato de serem conhecidos ajudou na tarefa. Nando saiu fichado, mas com a ajuda do pai, que conhecia o presidente do Conselho Nacional do Desporto (CND), conseguiu limpar seu histórico. Ainda jogou pelo Gil Vicente, de Portugal, mas sem sucesso. Em 2010, Nando se tornou o único jogador de futebol do Brasil a ser anistiado.
- Em 1969, o Edu foi o craque do ano. Era barbada para ser convocado para a Seleção. No pré-olímpico, o Brasil se classificou com um gol do Zico, que era o principal jogador do time. O João Havelange pediu a relação dos jogadores que iam para as Olimpíadas e devolveu faltando um jogador. Tudo isso por causa do meu envolvimento com o PNA e com os meus primos - recorda.
Carlos Alberto Torres, Leão e Pelé entregam placa a Geisel (Foto: Reprodução/Arquivo O Globo)
No dia 6 de outubro de 1976, o Maracanã recebeu um amistoso entre a seleção brasileira e o Flamengo. O jogo foi em homenagem ao jovem meia rubro-negro Geraldo, que morrera em agosto daquele ano, vítima de choque anafilático quando realizava uma operação para retirada das amídalas. A renda dos mais de 140 mil pagantes seria destinada à família do jogador. A partida foi também a última de
Pelé com a camisa da Seleção.
O Flamengo venceu por 2 a 0, mas no intervalo do jogo sobrou tempo para um ato político. Três jogadores do Brasil se encontraram com o presidente Geisel, que estava nas tribunas do Maracanã. Como escreveu o jornal O Globo na edição do dia 7 de outubro de 1976, “Pelé, Carlos Alberto e Leão, lhe entregaram, respectivamente, um cartão de prata em agradecimento pela regulamentação da profissão de atleta, uma Bíblia e um troféu”.
'ONDE A ARENA VAI MAL, UM TIME NO NACIONAL'
A frase acima, segundo o historiador Carlos Eduardo Sarmento, é atribuída ao Almirante Heleno Nunes, presidente da CBD entre 1975 a 1979, e depois da recém-criada CBF, no biênio 1979-1980. Heleno era presidente da Aliança Renovadora Nacional (Arena) – partido governista criado após o golpe – no Rio de Janeiro. Atendendo a interesses dos aliados políticos em diferentes estados, a CBD passou a convidar equipes para participar do Campeonato Brasileiro.
Em seu segundo ano à frente da instituição, Heleno incluiu mais 12 equipes no torneio, que teve 54 times. Em 1977, o número passou para 62. Mas em 1978, ano de eleições, a lista de convidados aumentou. Foram 74 times, sendo 11 estreantes. Um exemplo do uso político do campeonato foi o Itabuna, como explica o jornalista Roberto Assaf no livro “História Completa do Brasileirão”.
“O Itabuna entrou no campeonato bancado por um mutirão integrado por produtores de cacau, maior riqueza da região, e pelo governo do estado, que era da Arena, e que estava de olho na prefeitura do município, ocupada pelo MDB”
Inter campeão Brasileirão de 1979: campeonato com 94 clubes (Foto: Agência Gazeta Press)
Em 1979, o Brasileirão teria a sua edição com o maior número de participantes da história – e que dificilmente será batido: 94 clubes, com 23 estreantes. Curiosamente, foi o único ano em que o campeão conquistou o título de forma invicta. Com 16 vitórias e sete empates, o Internacional levou seu tricampeonato.
REINALDO: O PUNHO DO PROTESTO
Artilheiro do Brasileirão de 1977 com 28 gols pelo Atlético-MG, o jovem Reinaldo, então com 20 anos, já era a alegria da massa. No ano seguinte, chegou à Seleção e foi levado por Coutinho para a Copa do Mundo na Argentina. Mas os gols que marcou pelo Galo chamaram atenção do presidente Ernesto Geisel. O punho cerrado e levantado, um símbolo socialista, era a marca do jovem atacante a cada tento que fazia. Na preparação para o Mundial, quando o time brasileiro estava no Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, em Porto Alegre, Geisel deixou um recado para o jovem Reinaldo.
Reinaldo e sua marca registrada (Foto: Mauricio Paulucci)
- Quando fomos recebidos no Palácio Piratini, o Ney Braga, ministro da Educação, me conduziu para o presidente, que disse: “É esse que é o garoto? Você está bem, joga bem. Mas não fala de política, menino. A gente trata de política”. Diante de um general, fardado, tudo que pude responder foi “sim, senhor” - conta o maior ídolo atleticano.
O recado estava dado. Porém, na estreia do Brasil, contra a Suécia, em Mar del Plata, quando Reinaldo marca o gol de empate por 1 a 1, não hesita em parar e erguer o punho direito, mesmo que por poucos segundos. O atacante ainda jogaria a próxima partida, contra a Espanha, mas não voltaria mais ao time. Segundo o ex-jogador, o Almirante Heleno Nunes, presidente da CBD na época, tirou ele e Zico do time. Mas o Rei não se queixa.
- Na minha vida de jogador, não tinha tempo para protestar, armar nada contra o governo. Não era assim. Claro que tem ficha minha no Dops (Departamento de Ordem Política Social), pelas minhas amizades, pelos eventos que eu ia, lançamento de livros. Mas participei dessa geração de luta. Hoje, com meus 57 anos, estou desfrutando de uma democracia na plenitude. Esse é o meu grande orgulho. Alguns pagaram com a vida para isso. Eu simplesmente participei dessa geração dentro do futebol.
SÓCRATES, CASÃO E ATÉ PELÉ: OS FICHADOS DO DOPS
Ficha de Sócrates no Dops SP (Foto: Reprodução/Arquivo do Estado de São Paulo)
Na fase final da ditadura, um movimento marcou o futebol brasileiro. Em 1981, liderado por Sócrates, Casagrande e Wladimir, o Corinthians iniciou a chamada Democracia Corintiana, onde jogadores, comissão técnica e diretoria decidiam tudo no clube por meio do voto. A iniciativa não foi uma surpresa para quem conhecia seus mentores, principalmente o Magrão. Sócrates era atuante no movimento a favor das eleições diretas, além de ser esquerdista.
Com tal atuação, os atletas eram observados pelo regime militar e tinham fichas no Dops. Nos arquivos relacionados ao “Doutor”, aparecem registros de jornais que citam a participação do ex-jogador em alguns eventos, incluindo uma sessão do Movimento Pacifista Brasileiro. Nem mesmo Pelé escapou. O prontuário do Rei relata que o atleta recebeu pedido de indulto de três presos políticos e comprou ações de uma rádio.
Ficha de Pelé no Dops SP (Foto: Reprodução/Arquivo do Estado de São Paulo)
DIDI PEDALADA: JOGADOR TORTURADOR
Didi Pedalada: agachado, o terceiro, da esquerda para a direita, com o Cruzeiro-RS de 1969 (Foto: Reprodução/Cruzeiro-RS)
Em novembro de 1978, o jornalista gaúcho Luiz Cláudio Cunha, à época repórter da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, recebeu um telefonema anônimo. Na ligação, Luiz foi alertado de que um casal uruguaio, que morava na capital gaúcha, fora sequestrado. O repórter, ao lado do fotógrafo João Baptista Scalco, foi até o apartamento citado pela denúncia.
Lá, descobriram que militares uruguaios e brasileiros estavam em uma ação clandestina, que fazia parte da Operação Condor – aliança dos regimes sul-americanos de combate a opositores –, na qual os militantes da oposição uruguaia Universindo Rodríguez Díaz e Lílian Celiberti e seus dois filhos haviam sido sequestrados. A operação foi desfeita, e o casal, que seria assassinado, libertado. Em 1980, a Justiça brasileira condenou dois policiais: João Augusto da Rosa, do Dops gaúcho, e Orandir Portassi Lucas, mais conhecido como Didi Pedalada.
Didi se destacou nos anos 60 e 70 atuando por Internacional e Atlético-PR. Jogou também por Guarany de Bagé e Cruzeiro-RS e em clubes do México e dos Estados Unidos. Ao encerrar a carreira, se tornou escrivão da polícia e, segundo os relatos de Universindo, um dos seus sequestradores que mais o torturavam. Didi faleceu em 2005, vítima de parada cardíaca.